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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

As Travessuras de Tonhola - Alguns dias na Fazenda

Daquela vez Dona Rica foi junto com o Tonhola num passeio durante um feriado prolongado na fazenda de uns amigos. Foram bem cedinho, ainda de madrugada, os primeiros raios de sol tentavam se manifestar no horizonte, num daqueles amanheceres amarelo alaranjados que inspiram os poetas. O percurso seria feito de ônibus e teriam que caminhar algumas quadras até o ponto. Tonhola nem dormira direito aquela noite, tamanha a expectativa pela viagem. Alguns anos antes, Dona Rica fora a passeio na mesma fazenda, bem antes de Tonhola nascer. O casal de amigos, já idosos, não tinha nenhum dos filhos morando com eles na fazenda, todos já eram adultos e trabalhavam na cidade; naquele final de semana eles estariam sozinhos, por isso fizeram o convite para a velha amiga; é claro que pode levar o neto, será um prazer uma criança ativa para alegrar a casa, foi a recomendação da amiga.

Era uma fazenda antiga, com tudo que uma fazenda tem de direito. Mal chegaram e Tonhola saiu em disparada para conhecer o lugar, os cachorros, três, todos adultos, sendo dois grandes e um pequeno, o recepcionaram, juntamente com o fazendeiro; logo todos já ficaram amigos, algumas crianças têm facilidade em se relacionar já na primeira vez com os animais de estimação. Começou o passeio pelo curral de madeira lascada, com várias repartições para separar o gado; tronco para vacinação dos animais, ligado ao embarcadouro da mesma madeira, mas cheio de terra e com o calçamento interno feito com pedras tapiocangas formando a rampa para o embarque; uma parte do curral também era calçada com o mesmo tipo de pavimento, onde ficavam as vacas de leite para a ordenha; uma parte coberta com algumas prateleiras onde ficavam os latões de metal e também de plástico para armazenar o leite a ser transportado. Tonhola fez questão de percorrer todas as repartições do curral, se divertindo com o chiar das porteiras velhas de madeira que ele abria e fechava. O curral ficava ligado à velha casa. Era uma casa típica com seus mourões de madeira se destacando sobre o emboço rústico com pintura a cal na cor azul já bem desbotado, mas ainda dava para ver as marcas da brocha no grosso da pintura que ainda insistia em permanecer ali; as janelas eram todas de madeira e enormes, muito altas com os batentes grossos se sobressaindo sobre o emboço, tanto para as janelas como para as portas e eram pintadas com um tipo de verniz sem brilho, ou desbotado, de cor escura tipo imbuia.

No quintal, um pomar bem formado com muitos tipos de árvores frutíferas, onde um pé de jaca totalmente carregado de frutos de todo tamanho se destacava entre os demais e uma variada espécie de frangos, galos, galinhas, pintinhos, angolas, marrecos e até um pavão, todo imponente, ciscavam por entre as plantas.

Nos fundos um mangueiro com muitos porcos caipiras se chafurdando na lama; o cercado dos porcos era feito com tábuas rústicas de madeira também lascada, dispostas lado a lado semi-enterradas no terreno em todo o contorno do mangueiro, podia-se ver muitas palhas de milho seco esparramadas, algumas ainda limpas que os porcos deviam ter acabado de comer. Tonhola era só felicidade.

Depois de explorar todo o entorno da sede, ouviu os gritos da avó o chamando na varanda da casa. A varanda era em forma de éle, sendo mais larga a parte que ficava nos fundos, de frente para o pomar; ali também que ficava o fogão a lenha e uma enorme mesa de madeira, que mais tarde ouviram, era um orgulho do fazendeiro porque ele ajudou a derrubar a árvore que deu aquela mesa, um tronco só, de sucupira preta, tão larga que Tonhola tinha que abrir os braços para segurá-la nas extremidades frontais com as duas mãos e na espessura era da grossura do punho fechado do menino; as pernas da mesa eram quadradas e grossas e umas vigas em xis davam o travamento garantindo a estabilidade da estimada e útil mesa de fazenda; já as cadeiras, eram de vários tipos e a maioria comprada em lojas, algumas até com estofamento estragado, dando a impressão de serem móveis da cidade que ficaram velhos e foram levados para a fazenda, contrastando com a beleza da mesa rústica.

Passados os minutos de admiração, era hora do lanche, e que lanche: broa de milho, bolo de fubá, pão de queijo, geléia caipira de marmelo, chá de canela e leite quente adocicado com açúcar queimado, que delícia; como saíram de madrugada, sem se alimentar direito, aquele café era, com certeza, muito bem vindo por nosso amigo. Enquanto Tonhola se fartava à mesa, Dona Rica, também beliscava alguma iguaria tomando café em uma xícara de alumínio esmaltado branco, já com as beiradas lascadas pelo uso e com uma estampa de um bezerro malhado em preto e branco. A amiga, não se sentou à mesa, ela continuou sua lida, já se preparando para iniciar o almoço, uma lenha a mais no fogão, uma água na panela de ferro maior para começar a ferver, uma batida no feijão na peneira que aparentava já ter sido catado. Uns nacos de carne seca, pendurados no madeiramento esfumaçado da cobertura sobre o fogão, foram retirados e levados ao tanque para serem lavados e separados numa bacia de alumínio muito bem areada, certamente seria a mistura do almoço.

O fazendeiro estava demorando. A esposa disse que ele tinha ido ver uma cerca que o gado estava passando, mas que já devia estar voltando, era já quase hora do almoço.

Tonhola perguntou pela televisão, ali não tinha televisão, só quando os netos vinham é que eles traziam, perguntados por que eles não deixavam a televisão na fazenda, a senhora disse que o marido é que não queria, para não pegar os maus costumes da cidade e assim ela também se acostumara e não sentia falta. As noites, em sua maioria, que ficavam somente os dois na fazenda, algumas vezes eles tinham a companhia de empregados da fazenda que moravam em suas casas que ficavam um pouco afastadas, um deles tinha até dois meninos da idade de Tonhola, já precisando ir para a escola. As noites que não recebiam visitas ficavam sentados na varanda, nas duas cadeiras de balanço, conversando abobrinhas e observando o horizonte imaginando os mundos que não haviam atrás dos montes. Também, eles dormiam muito cedo, junto com as galinhas.

Tonhola ficava atento a tudo que a senhora falava, ele estava fascinado com o jeito sossegado dela falar com aquela voz manhosa que se arrastava.

Com a chegada do marido, almoçaram. Após o almoço, nosso herói, cansado por ter acordado de madrugada, dormiu na cama com colchão barulhento de mola no quarto dos netos com aquelas enormes janelas de madeira.

Acordou ouvindo o fazendeiro chegando a cavalo, ficou chateado com a sensação de que perdera alguma coisa, pensou que talvez pudesse ir também a cavalo em companhia, mas não fora daquela vez, foi lá ver o fazendeiro desarrear a montaria: um arreio muito antigo de couro, um pelego de lã vermelha, uma baldrana com grandes bolsos dos dois lados, mas que estavam vazios e a cabeçada, com rédea de lã trançada, o baixeiro era de um tecido grosso tipo lona e de uma cor esverdeada, que exalava um cheiro muito forte do suor do cavalo, mas que não era enjoativo; estando tudo no lugar, o fazendeiro o convidou para conduzir o cavalo pelo cabresto até o pasto; que alegria, se sentiu o poderoso; durante o percurso foi perguntado se já havia andado a cavalo, com a negativa, foi convidado a andar no outro dia de manhã; solto o animal, o menino saiu correndo todo feliz para contar a novidade para a avó.

Naquele primeiro dia na fazenda, a noite chegou mais devagar, uma colaboração da natureza para que eles pudessem admirar o esplendor dos tons de vermelho no por do sol entre as montanhas. Jantaram um belo de um frango caipira com caldinho que sua avó disse também ter ajudado a fazer; a sobremesa era um pote de doce de casca de laranja, mas Tonhola não quis, foi para a varanda acompanhar o fazendeiro; sentou num banco de madeira que era uma tábua da mesma madeira da mesa da cozinha, presa entre os pilares de sustentação da varanda; enquanto observava o fazendeiro, que não gostava de muita prosa, espichar as pernas sobre um banquinho pequeno de madeira e acender um cigarro de palha grosso e fedido; até que sua avó veio chamá-lo para ir se deitar, afinal ela também havia madrugado e estava cansada da viagem.

Naquela noite, junto com o casal de amigos, eles também foram dormir com as galinhas. Certamente Tonhola deve de ter sonhado com o passeio que o aguardava no outro dia.

Dormir cedo tem dessas vantagens, no outro dia ainda estava escuro e já se ouvia barulho pela casa, passos delicados pra lá e pra cá, berros vindos do curral, Tonhola se levantou apressado, não conseguiu abrir a pesada e grande janela de madeira, mas pelas frestas já dava para ver o bucólico clarear da manhã sertaneja, aquele cheirinho delicioso de café torrado tomando toda a casa vindo lá da cozinha. Lavou-se, sua avó já estava composta observando a amiga e com toda disposição: onde posso ajudar, o que fazer primeiro, água para as galinhas deixa que eu arrumo a mangueira, ela deve ter se soltado da torneira durante a noite, tire a vasilha com as quitandas, tem chocolate em pó na despensa, se o menino quiser, ele gosta de tomar leite no curral, nunca tomou, então ele vai gostar, peque aquele copo grande de alumínio, coloque o chocolate em pó do tanto que ele gostar e vá com ele até o curral que ainda estão tirando o leite, que bom, vamos lá Tonhola, mas sem fazer barulho para não assustar as vacas, se ajeitaram na beira da cerca, e o menino subiu na terceira tábua do curral para ver melhor o fazendeiro com seu chapéu de lebre bem surrado e suas botas de borracha branca agachado entre as vacas tirando o leite junto com um ajudante que também tirava o leite de outra vaca do outro lado, pediram para esperar um pouco porque já estavam terminando aquelas vacas e iam chamar a manhosa, uma vaca especial, para que bebessem o leite dela; o leite veio quente, espumando e Tonhola o bebeu quase que de um gole só, quer mais, dá cá o copo novamente, o chocolate ainda se mostrava no fundo do copo, tomou mais devagar o segundo copo de quase meio litro; sua avó não bebeu; aquilo sim era um verdadeiro café da manhã, agora era aguardar o final da retirada do leite e esperar eles soltarem as vacas para depois cavalgarem; foram para a varanda terminar o café, nesse prazo a amiga tinha feito uns bolinhos de polvilho fritos na manteiga, mesmo com o tanto de leite que bebera no curral, os bolinhos eram irresistíveis, o menino comeu alguns e foi para a varanda da frente da casa aguardar ansioso pelo passeio a cavalo.

Viu quando acabaram de retirar o leite, o vaqueiro dirigiu-lhe uma brincadeira qualquer de longe, que ele não entendeu direito, mas acenou com a mão em agradecimento mesmo assim, o fazendeiro veio em sua direção e ele o acompanhou adentrar a casa e se dirigir a uma sala na lateral onde trocou as botas e foi para a varanda tomar o café com as senhoras. O vaqueiro atendeu ao pedido do fazendeiro e trouxe os cavalos para a porta da casa, já arreados, um com um arreio para meninos que há tempos não era usado; os netos cresceram e não mais quiseram andar a cavalo.

Por ter sido a primeira vez, até que foi tudo bem, não deu nenhum trabalho, e olha que nosso amigo conseguiu acompanhar a volta matinal rotineira do fazendeiro por quase toda a fazenda. Um passeio inesquecível.

Tonhola não pensava em voltar à cidade. Todos os dias de manhã ele tomava leite no curral, acompanhava o fazendeiro na cavalgada matinal, almoçava como um príncipe, cochilava no período da tarde, ajudava a zelar da criação, adorava jogar milho para as galinhas: cut, cut, cut; as vezes ouviam rádio na varanda após o jantar, os quatro, enquanto relembravam fatos antigos, lembranças comuns que despertavam a imaginação do moleque, que atento, não perdia uma fala, até fazia perguntas curiosas provocando risos.

Mas era preciso voltar. Foram acompanhados no dia da volta, após o almoço, até a beira da estrada, onde debaixo de um frondoso pé de jatobá, aguardaram a chegada do ônibus que os levaria até a cidade. Convidados a voltar, Tonhola já queria deixar até marcado o dia, calma menino, não é bem assim, disse Dona Rica, satisfeita com o tranquilo descanso e também até que surpresa pelos dias sem preocupações maiores com o neto.

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