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domingo, 29 de setembro de 2019

As Travessuras de Tonhola - A caligrafia do seleiro

Aquele senhor fora funcionário de um cartório numa outra cidade. Também fora nomeado delegado, na época era assim também com oficial de justiça e juiz de paz.
Ali na fábrica ele era seleiro.
Exímio artesão fabricante de arreios. Fabricava arreio do tipo cutiano e também o do tipo lumbio. O arreio lumbio é aquele de cabeça para se prender as pernas.
Certa vez, Tonhola estava de bobeira ali pela loja, quando viu escrito numa folha de papel destacada de caderno espiral, uma lista de materiais para fabricação de arreios, que o gerente havia deixado sobre o balcão.
Nada de mais, aliás a lista em nada o interessava. Mas aquela letra artesanal, as maiúsculas desenhadas, com garranchos e entornos simétricos, aquilo sim ele nunca tinha visto e ficou fascinado.
A letra do senhor seleiro fabricante de arreios era de uma beleza que muito contradizia com a rudeza de sua atual profissão.
Coisas da vida.

As Travessuras de Tonhola - O amigo Muamba

Muamba foi um dos amigos de Tonhola que tiveram como primeiro emprego o trabalho de ajudante de sapateiro. Ou, como eram chamados na época: "gancho".
Muamba era muito magrinho, esperto e brincalhão. Um sorriso maroto, sempre estampado no rosto, era sua marca.
Era um fiapo de gente, por isso o apelidaram de Muamba.
A fábrica onde trabalhavam tinha por costume fazer uma festa no final do ano.
Seria a primeira que o Muamba participaria na empresa.
A festa era oferecida aos funcionários e familiares, por isso Tonhola não fora convidado.
Ele ficou sabendo depois do ocorrido com o amigo Muamba.
Disseram que o menino se entusiasmou e entrou no embalo dos amigos mais velhos, misturou pinga com cerveja e se deu mal. Deu o maior vexame na festa.
A zoeira foi tanta que aquela foi a última festa oferecida pela empresa aos sapateiros, seleiros e ganchos.

As Travessuras de Tonhola - O Tião e a taca

Naquele dia o Tião não estava com sorte.
Pegou o gerente da loja num dia ruim e nem viu quando o irritado senhor meteu-lhe uma taca nas costas.
Aquilo doeu pra caramba.
Taca é feito um chicote de couro cru, só que em vez de ser trançado e fino é de uma forma larga no início e mais fina na ponta. É feita com duas tiras grossas de couro cru, costuradas uma à outra pra dar maior rigidez à lambada. No punho, geralmente uma argola larga separa a empunhadura do relho. Esse cacete com alça no pulso era muito utilizado para punir os animais e também os escravos.
O Tião não chorou porque tinha gente em volta e porque não era do seu feitio, mas se arredou dali de fininho com o lombo ardendo e a alma então nem se fala.
Ele era um abestado que nasceu com uma deficiência mental. Os médicos na época falaram que ele não passava dos sete anos. Quando Tonhola o conheceu ele já tinha mais de cinquenta anos.
O coitado nasceu troncho, meio curvado para o lado direito, babava e não falava direito. Ouvia muito bem, entendia tudo e ria sempre. Um pobre coitado.
Fosse outro, aquele senhor da loja nunca teria lhe rendido a taca nas costas.

As Travessuras de Tonhola - O Bar Gamela

No Bar Gamela os trabalhadores rurais tomavam suas refeições.
Nos dias de folga, era pouso nas pensões da cidade e bóia no Bar Gamela.
Dona Rica por uns tempos, forneceu ovos para o bar.
Tonhola fazia as entregas. Com muito cuidado ele ia pela rua com aquele caldeirão de alumínio pesado, cheio de ovos frescos. Naquele tempo não havia as embalagens próprias para ovos.
Os sujeitos davam o duro no campo, recebiam e iam para a cidade gastar. Batiam ponto no Bazar Rural e compravam pelo menos uma daquelas camisas "da hora", uma bermuda nova não podia faltar, um chinelo de dedo, um conjunto de toalhas e a calça de casimira. Não viam a hora da noite chegar e se dirigiam cedo para a diversão na zona do meretrício.
Casas de luzes coloridas anunciavam as portas abertas para o comércio do prazer.
Os caras se divertiam.
Alguns abusavam na bebedeira e acabavam voltando no início da semana para a lida na roça sem nenhum tostão no bolso, gastavam tudo na farra.
Pareciam felizes.

As Travessuras de Tonhola - Doce de arroz

Doce de arroz naquelas cumbuquinhas de vidro com cobertura de canela, essa deliciosa especiaria de origem chinesa, não tem preço.
Esse doce foi um dos muitos sabores de infância na memória de Tonhola.
No bar, os doces ficavam dispostos num balcão com o vidro meio inclinado tudo organizadinho. Além dos doces de arroz, pudins, quidins de coco, cocadas e brigadeiros completavam o delicioso painel visual.
O doce de arroz era servido em duas cores, o branco natural e o moreno feito com o açúcar queimado, de longe o preferido do nosso garoto.
E com aquela canelinha moída por cima então, uma maravilha!

As Travessuras de Tonhola - Água de sola

Naquela ala da fábrica de calçados, trabalhavam seis sapateiros. Cada um tinha sua banca, sua prateleira com os repartimentos de madeira onde ficavam separadas os diferentes tamanhos de pregos ou taxas. Os sapateiros trabalhavam colocando as taxas na boca pra andar mais rápido na prega dos calçados presos em suas formas que eles seguravam firme entre os joelhos. Num dia bom, os melhores sapateiros chegavam a fabricar vinte pares de calçados ao dia, em sua maioria botinas.
Também compunham o arsenal do profissional, um tamborete de madeira feito de tiras de pneu, porque ninguém merece ficar o dia todo sentado trabalhando em cadeira fechada, é preciso ventilação inferior. E outro tamborete no lado oposto, bem de frente ao sapateiro, onde ficava o ajudante, que organizava os calçados no pequeno espaço em forma de meia ferradura, sempre ao alcance das mãos para não perder tempo.

Aqui cabe um capítulo à parte, porque foram muitos os amigos de Tonhola que foram ajudantes de sapateiro no início de suas carreiras como trabalhadores. Ajudantes que não sei porque eram chamados carinhosamente de "ganchos" . Um deles era o seu querido amigo Muamba, como veremos em breve.

O tamborete do sapateiro ficava entre a prateleira e a parede sem espaço justamente para ninguém passar por ali. Era perigoso. O sapateiro trabalhava com faca de sapateiro, ou seja, muito afiada e com ela moldava a sola do calçado à forma, sempre com a forma presa forte ao peito, para não vacilar. Mesmo assim, muitos deles tinham marcas de cortes no peito. Feias cicatrizes. Devido o forte calor, praticamente o ano todo, naquele tempo era permitido, muitos dos trabalhadores não usavam camisas.
Aqui entra o motivo do título desse capítulo.
Cada conjunto desses tinha uma janela de madeira alta, presas em dobradiças que abriam pra cima, para dentro do prédio. Algumas ficavam presas em correntinhas, outras em barbantes e outras eram simplesmente escoradas com algum sarrafo de madeira.
Nessa folha de janela os funcionários dependuravam suas roupas, para a troca no final do expediente.
Essas janelas quase já levaram os funcionários a sérios desentendimentos e até mesmo demissões.
Imaginem só: o cara chega pra trabalhar levando o badeco pra bater o rango na hora do almoço e não perder tempo porque recebe por produção, ou seja, quanto mais calçados ele fizer, mais ele ganha no final de semana, por isso nada de almoçar em casa; daí o cara se lasca o dia todo concentrado nas formas de calçados e no tamborete de tiras de pneu, no final do dia, contente com a produção, organiza tudo, deixa os calçados prontos para a desforma no outro dia pela manhã pra começar tudo de novo. Dá uma lavada, mal lavada no corpo suado num banheiro improvisado e escuro num dos cantinhos onde ficam estocados os materiais. Muitos rolos de solas e vaquetas. Depois sai feliz cheirando a sabonete "primavera" ou "carnaval", volta para sua banca, troca de roupa e quando vai fechar a janela, apressado para chegar em casa e, putz, toma um belo dum banho de água de sola com sua roupa limpinha ao baixar a janela.
Pra quem não sabe, água de sola é a água que colocam couro cru de vaca para amolecer. No outro dia, com o couro mole o utilizam para fazer suador de arreio. São aqueles dois travesseiros, cheios com capim mumbeca que vão na parte de baixo do arreio para apoiar no dorso do animal.
Sentiram o cheiro da água.
Pois é!
Fede pra caramba e a cor da água é realmente de burro fugido.
A sacanagem era colocar um galão de uns três litros, cheio de água se sola em cima da janela de madeira. Ao abrir e ainda olhando para cima para soltar o improvisado fecho o banho era certo.

As Travessuras de Tonhola - Martelo de borracha

Joacir que sempre aprontava alguma, aprontou de novo com o pobre do Tonhola.
Na loja que ele trabalhava havia chegado uma mercadoria embalada em caixas grandes de madeira.
Era preciso desembalar as mercadorias, sob os olhos atentos do gerente.
Enrolando para iniciar o serviço, Joacir viu quando Tonhola ia passando despreocupado e chamou-lhe.
- Tonhola estou cá enrolado pra abrir essas caixas, você me faz um favor?
O pobre do moleque nem teve tempo de responder.
- Tá vendo lá na ferragista, do outro lado da avenida. Corre lá e pede pra eles emprestarem o martelo de borracha. Diga que é rapidinho assim que terminar o serviço eu devolvo.
Tonhola pensou "martelo de borracha".
- O que seria aquilo?
Deixa estar. Como era o amigo Joacir que pedira, ele foi buscar o martelo sem questionar.
Na loja o pessoal o atendeu às gargalhadas.
Volte lá Tonhola que o Joacir está mangando de tu. Não existe martelo de borracha em ferragista.
(Naquela época não existia, hoje existe).

As Travessuras de Tonhola - O quibe do Galo de Ouro

Galo de Ouro era outro bar afamado da região, juntamente com o Columbia, o Quitandinha e o Gamela.
Mais voltado à vida noturna só era aberto no período da tarde.
Eles vendiam uns salgados assados deliciosos e um inesquecível quibe frito com ovo dentro que era o ó do borogodó.
Tonhola sempre que podia dava uma escapadinha para saborear um deles.

As Travessuras de Tondela - O dono do Bar Quitandinha

O dono do Bar Quitandinha era um senhor baixinho e gordo, mais barrigudo que gordo. Ele acabara de adquirir um carro zero na cor vermelha. Um fusquinha. O pobre homem dirigia com o queixo acima do volante e consequentemente a barriga roçando o mesmo.
Ele bebia e vez por outra exagerava.
Tonhola presenciou uma triste cena, engraçada para alguns.
Um dia no final do expediente o pobre coitado estava tão bêbado que teve dificuldades pra baixar a estreita porta de ferro de enrolar do seu bar. As chaves eram um calhamaço de um chaveiro com muitas chaves, entre elas, claro, estava a chave do carrinho novo.
Fechada a porta, ele primeiro se certificou, como de hábito, que a porta estava bem trancada dando uma forte sacudidela tentando abri-la e foi cambaleando para o carro do outro lado da avenida de duas pistas. Ele sempre estacionava ali para ter o carro ao alcance da vista.
Só que, justo daquela vez, para seu asar, estacionaram atrás outro fusca idêntico ao seu.
A chave não entrava.
Ele tentava e nada. Rodava aquele monte de chaves com as pontas dos dedos à altura do olho para se certificar que era a chave certa, tentava de novo, e nada de a chave entrar. Aquilo já estava lhe dando nos nervos, apesar da manguaça. Ninguém foi lá lhe dizer que ele não estava em condições de dirigir e também que o seu carro era o da frente. Preferiram ficar longe, rindo e zombando do pobre homem gordo e baixinho e bêbado. Entre eles o menino Tondela que também participava do encerramento do expediente comercial e adorava um mal feito.
O fecho da história deu-se quando um transeunte, que não tinha nada com a história, só estava passando por ali, ao perceber o homem naquela agonia, perguntou-lhe se não poderia ser o carro da frente. O baixinho olhou para o seu carro e ainda deu uma má resposta ao transeunte.
A plateia em delírio observava se ele conseguiria "vestir" o carro e sair dirigindo. O homem conseguiu e escafedeu-se dali com seu estado etílico sem maiores problemas.