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domingo, 2 de agosto de 2020

Fila

O sujeito chegou apressado,
viu o tamanho da fila e se apavorou.
Pegou a senha meio que sem querer;
quarenta na sua frente.
Tirou do bolso um bilhete
e confirmou o horário do ônibus;
menos de duas horas para sair.
O jeito é esperar, pensou.
Reparou um guri, o segundo da fila.
Reclamou qualquer coisa;
disseram-lhe da fila:
"segure sua senha e se aquiete".
A aflição lhe tomou de conta,
não se aguentou e foi até o guri::
"vinte paus pra trocar a senha".
O moleque se assustou.
Uma moça logo atrás,
ouviu e se adiantou:
"troco a minha por quinze".
O garoto não gostou
e disse: "tudo bem eu topo".
Pescoços foram espichados.
Alguns resmungos na fila.
O negócio foi fechado.
Ficou por isso mesmo,
ninguém foi prejudicado
por aquele ato indigesto
de corrupção pura.
O corrupto e o corruptor
se entenderam bem
para a indignação de todos
que engoliram quietos.
O sujeito foi atendido,
pagou suas contas e vazou.
O guri foi para o final da fila
sob condenatórios olhares
de grande parte da fila.
Onde se enquadra a moça
que tentou se corromper
corrompendo o corrupto?

domingo, 7 de junho de 2020

Poemas perdidos

Alguns poemas se perdem
eles brotam fora de hora.
Um bom tempo depois
podem voltar nos sonhos.

Guinada

Foi bom saber
que aquele moço engomadinho
que influencia milhões
deu uma guinada na vida.

Na entrevista
o engomadinho não se posicionou
nem para o lado do que foi pra Paris,
nem daquele que prega o Estado mínimo,
preferiu o conforto e o equilíbrio do muro.

Já imaginou um país como o nosso sem o Estado?
Quem iria tomar conta de nossas águas limpas e sujas,
de nossas fontes de energia,
de nosso imenso e rico subsolo,
do pulmão do mundo?
Quem iria zelar pela ciência, educação,
saúde e segurança de todos
e não somente dos que podem pagar?

Enquanto a direita pune,
apedreja, massacra, estraga,
pra conservar o seu mundo como está,
a esquerda vibra, canta, planta,
pulsa, pula, diverte,
faz arte, faz canções,
produz, faz girar o mundo
e luta para transformá-lo num lugar melhor para todos.

Enquanto a direita se veste de verde e amarelo da boca pra fora
a esquerda vibra e chega a chorar quando ouve o hino nacional.

Enquanto a direita desdenha e menospreza a ciência e a morte
a esquerda respeita e acredita e tem fé na vida
enquanto houver um fio de esperança,
o última que morre.

Enquanto a esquerda não enxerga fronteiras,
pois somos todos países irmãos,
a direita prega nosso país acima de tudo,
venera a bandeira de outro país
e ainda usa o nome d'Ele em vão... acima de todos.

Falsos profetas usam a religião,
abusam da fé do homem,
vendem feijões e lenços ungidos,
mentem e prometem milagres
que não conseguirão cumprir,
em busca de riqueza e poder.
A fé do homem exige respeito.

As igrejas precisam rever seus conceitos.

Vi belas igrejas cercadas por grades
para protegê-la do homem,
o mesmo homem que ela deveria sim:
proteger e apoiar.

"A economia não pode parar", dizem.
O mercado é um monstro.
Ele cria monstros
que vomitam frases assim
e as priorizam
acima da saúde e da vida.

O monstro os alimentou
com uma educação de merda
e os soltaram para a vida
sem saber quem foi Getúlio,
quem dirá Brizola;
sem saber quem foi Noel,
quem dirá Taiguara.

Sabemos que são minoria,
mas não podem ser desprezados,
precisamos enfrentá-los
com a força da palavra
e a voz da razão,
antes que o estrago aumente.

Hoje eles nos desrespeitam nas redes,
amanhã será nas ruas
e depois em nossas casas.

A direita fala em armas,
a esquerda em amor e livros.

Apesar de tudo isso:
precisamos conviver com eles.
Por mais duro que seja,
alguns são parte de nós:
são vizinhos antigos,
colegas de trabalho,
amigos de infância,
irmãos, tios e primos.

Com opiniões diferentes,
mas juntos em comunhão:
Democracia!

A política está em nós
não existe velha ou nova,
existe: a política.
Nela, ninguém faz nada sozinho,
não existem mitos
nem salvadores da pátria.

Ninguém nasce racista
ninguém nasce homofóbico,
ninguém nasce xenofóbico,
ninguém nasce com ódio,
ninguém nasce com nojo.
O mal está no homem.
O mal é coisa do homem.

Nenhum grupo pode ser considerado
menor que o outro.
Somos todos iguais.

Precisamos educar nossas crianças.
Falar com elas.
Nós que as formamos.
Crianças em isolamento
são incompreendidas.
A dor reprimida cria monstros ferozes.

Negros, ricos, pobres, índios, gays,
nordestinos e todas as minorias
precisam ser respeitadas.
"Bicha também é gente".
Li isso num viaduto
a primeira vez que tive em São Paulo
no início dos anos oitenta.

Respeito.

A igualdade de gênero,
que apavora as gerações
não tem nada de pavor:
É só aceitar que homens e mulheres
devem ter os mesmos direitos e deveres.
A igualdade entre os sexos é um direito humano,
a igualdade entre os gêneros também,
com todas as suas variações.

Foi preciso uma pandemia com essas proporções
para muitos entenderem e aceitarem
a importância do nosso Sistema Único de Saúde.
Infelizmente, muitos ainda sentirão o peso da dor da perda.
A ciência dará o seu recado e trará o elixir.
Depois... o mundo será outro.

domingo, 17 de maio de 2020

O amor e o ódio

Que todos possam ser amados
e se lembrem disso
antes de saírem armados.

Que todos se amem
e façam mais vezes o gesto universal
de respeito e veneração
juntando as palmas das mãos:

— Amém!

sexta-feira, 15 de maio de 2020

As Travessuras de Tonhola - A Mudinha

A mudinha era uma moça baixinha, rechonchuda e assanhada. Tonhola só a conhecia de longe, algumas vezes ele a vira no armazém do turco e ficava observando sua forma de se comunicar emitindo seus diferentes sons, sempre muito sorridente. Certo dia durante um racha no campinho de terra ele ouviu os garotos fazendo comentários não muito elogiosos a seu respeito e ficou encucado com aquilo. O tempo passou. Alguns anos mais tarde, veio a saber que a garotada fazia fila para bulinar com ela sob a frondosa paineira da rua até então somente demarcada; rua que viria a ser aberta pelas máquinas da prefeitura pouco tempo depois. O reboliço era geralmente durante a noite, depois de terminada a novela da televisão. Ela sorria o tempo todo diziam. Foi a primeira vez que Tonhola foi chamado de trouxa pelos colegas. Apesar da tenra idade e da curiosidade avassaladora sobre tão interessante assunto em meninos daquela idade, ele não achava certo e nunca quis se envolver. Ele chegou a frequentar a sombra noturna daquela histórica árvore, mas por outros motivos também libidinosos que lhe causariam menos transtornos. Mas isso é assunto para outro capítulo.

sábado, 2 de maio de 2020

Organizador de coisas

Foi num filme em que a mulher havia se casado com o cara errado, com o inimigo. Um filme de terror. Numa das cenas a câmera percorreu e mostrou detalhadamente o armário da cozinha do cara. Era tudo muito organizado. Rigorosamente empilhados os produtos, com os rótulos todos ordenados, coisa de maluco. Será?
Do filme, até que ele não gostou muito, mas gostou daquilo e ficou com aquela cena na cabeça. Chegou em casa foi no armário e organizou o que pode: alinhou 3 caixas de leite longa vida, empilhou 2 latinhas de sardinha, um pacote de macarrão espaguete e outro de macarrão de sopa e percebeu que precisava fazer compras. Faltaram itens para organizar. Foi à geladeira e também deu uma guaribada.
Lembrou de outro fato que ele teria lido, ou cena que teria assistido, não sabia ao certo de onde, mas se lembrou de um artista que no seu tempo, encomendou doze ternos cinzas rigorosamente iguais, tudo para não gastar os neurônios pensando no que vestir todos os dias; em todas as ocasiões ele estava sempre de terno cinza, virou uma farda. Pensou em organizar também o guarda roupa, abriu o armário e desistiu.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

O bolo da Tassinha

O pai compenetrado
tentava ensinar à filha pequena,
só que ela,
viajando,
pediu mais um pedaço de bolo
— Presta atenção menina!
— Tô te explicando
e você só pensa em bolo.

domingo, 26 de abril de 2020

Córdoba

Tenho um amigo
que na juventude
namorou uma moça
que se chamava Córdoba.
Na Argentina deve ter muitas.

Assim como no Brasil tem muitas:

Brasílias,
Aparecidas,
Marianas,
Vitórias,
Iracemas,
Carolinas,
Marílias,
Teresinas,
Áureas,
Angelinas,
Silvanias,
Constantinas,
Lorenas,
Denises,
Rosanas,
Açucenas,
Natividades,
Catarinas,
Guadalupes,
Cássias,
Florânias
Magdas,
Lucélias,
Marilenas,
Cristinas,
Juremas,
Cláudias,
Veras,
Maria Helenas,
Leopoldinas,
Ernestinas,
Barbacenas,
Fátimas,
Angélicas,
Getulinas,
Piedades,
Jacobinas,
Betânias,
Lucrécias,
Lutécias,
Jandiras,
Nazarés,
Jussaras,
Lavínias,
Olímpias...

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Maria Cristina

Enquanto Cristina dormia,
Maria bolinava na sala ao lado.
As duas portas do prédio comercial
ficaram abertas,
Maria não quis fechá-las,
para não acordar Cristina.
Mas ela fechou a porta da divisória
mambembe da entre sala
e seguiu em bolinamento.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

As Travessuras de Tonhola - Pão com sardinha

O melhor da pescaria era a hora do lanche.
Pão com sardinha e guaraná ao natural em garrafinhas de vidro. Algumas das garrafinhas vinham com uma saliência no gargalo, tipo um anel. Sabe-se lá pra quê!
Tonhola desde tenra idade dava mostras de que nunca seria um bom pescador.
Adorava peixe. Frito, ao molho, assado, de qualquer jeito.
Nas pescarias, sobrava pra ele conduzir a tralha, separar os anzóis, as iscas, todos os apetrechos e ainda guardar os pescados. Tinha que fechar bem o viveiro de nylon para que os danados mais espertos não escapassem. O viveiro ficava amarrado numa cordinha com a boca muito bem amarrada e fechada com os peixes dentro, de preferência semi submerso para conservar os peixes ainda frescos e vivos. A outra ponta da cordinha era presa geralmente num galho firme. Não foram só uma ou duas vezes que Tonhola não fechou direito a boca do viveiro e deixou escapar alguns peixes, para ira de seu tio que ficava possesso de raiva. Assim, toda atenção era pouca. O tio de Tonhola era um exímio pescador. Quando alguns amigos compartilhavam da pescaria, no poço que reclamavam que não dava nada, o tio esperava que eles se mudassem de lugar, ia de mansinho, ocupava o canto amaldiçoado pelos amigos pescadores e em quase que total silêncio e concentração, enchia o viveiro enquanto os outros reclamavam. Pescaria é uma arte. Arte que Tonhola nunca aprendeu.
Agora saborear pão com sardinha, com a barriga na miséria, no final da tarde, isso sim ele sabia e fazia com muito gosto.

sábado, 18 de janeiro de 2020

As Travessuras de Tonhola - Passeio na usina

Num domingo o tio de Tonhola o convidou para junto com os meninos fazerem um passeio diferente.
Organizavam uma caravana para irem de caminhão, naquele tempo podia, fazer um passeio no lago do rio próximo, que se formou com a construção da primeira usina hidroelétrica da cidade.
Com a carroceira quase lotada, todos acomodados em tábuas atravessadas, partiram. Era quase meio a meio homens e mulheres.
Poucas crianças.
Muitas moças divertidas puxavam a animação durante o trajeto.
Fazia sucesso na época uma música romântica que acabara de ser lançada e foram cantando estrada a fora: "... de que vale o céu azul e sol sempre a brilhar, se você não vem e eu estou a te esperar, só tenho você, no meu pensamento, e a sua ausência, é todo meu tormento, quero que você, me aqueça nesse inverno e que tudo mais, vá pro inferno, não suporto mais, você longe de mim, quero até morrer, do que viver assim, quero que você me aqueça nesse inverno, e que tudo mais, vá pro inferno."
Tonhola acompanhou o tio na estreita passarela sobre a barragem.
Suas pernas tremeram com o volume d'água e a velocidade que ela passava por baixo.

As Travessuras de Tonhola - O dentista

Páginas de terror.
A cadeira de dentista era assustadora.
As cordinhas, duas do braço mecânico que sustentava a broca, eram tocadas por um pedal, tipo aquele de máquina de costura.
O dentista, um senhor respeitado, que era prático, naquele tempo podia, sentado em seu banco acoplado à cadeira, tocava o pedal com o pé.
Era comum os dentistas práticos saírem em viagens pelas fazendas atendendo, ou melhor, extraindo e aliviando os pobres coitados.
Tonhola, o paciente impávido na cadeira, via e sentia as cordinhas vibrando com aquele barulho inesquecível.
Que cena macabra, ele se contorcia e se ajeitava na cadeira tentando meio que se afundar nela.
O dentista quase teve que amarrá-lo para iniciar os trabalhos.
Mas não foi preciso, com sua experiência e muito cuidado para não machucar o paciente, conseguiu fazer parte do tratamento.
Que coisa!
Causa remelexos e arrepios só de imaginar.